Lugar de Madalena
“Lugar
de mulher é na cozinha”, já ouvimos falar. Ou será que é na
cama? Que nada, lugar de mulher é na igreja. E no boteco? Boteco,
hora, não é bem lugar de mulher. Mulher no volante!! Isso não é bom. E no altar? Só se for para casar, acompanhada por um homem e
entregue a outro homem.
Mas isso já foi –
vocês estão pensando. Na verdade, isso já foi.. muito pior. Até
pouco tempo atrás, hospital, tribunal, parlamento, cátedra e mesmo
um palco de teatro não eram lugar de mulher. Os espectadores de
Shakespeare conheciam Ofelias e Julietas de bigode: suas donzelas
eram interpretadas por atores adolescentes. Por muitos séculos,
mulheres que praticassem em público alguma arte como dançar,
cantar, tocar flauta, dizer poemas ou até pintar, eram consideradas
“mulheres públicas” vale dizer, prostitutas. Quem praticasse
artes mágicas, místicas ou dominasse a medicina natural, era bruxa.
Lugar dela, a fogueira.
Hoje
em dia, temos mulheres médico e mulheres professoras, advogadas,
atrizes, diretoras de cinema e até mecânicas. Mulheres que,
aparentemente, conquistaram o seu lugar no espaço público.
Aparentemente, ou seja, no que diz respeito ao que aparece.
Hoje em dia, o corpo da mulher aparece
em cada esquina, em cada banca de jornal. Um corpo incorpóreo,
plástico, perfeito e despedaçado que é o melhor veiculo para venda
de qualquer produto. Esta conquista do espaço público è tão só
aparente, já que não corresponde à emancipação real da mulher,
pelo menos em nosso país. Um recente estudo do BID (Banco
Interamericano de Desenvolvimento) aponta uma diferença salarial de
30% (considerando mesma idade e mesmo nível de instrução) entre
homens e mulheres brasileiras, em qualquer tipo de emprego e qualquer
faixa etária: a pior percentual entre as 18 nações
latino-americanas.
Ah, mas em casa, è
a mulher quem manda – reclama alguém. Isso também, só na
aparência. No espaço doméstico, elas não são mais respeitadas do
que na rua. Segundo estudos em regiões do país tão diferentes como
São Paulo e Pernambuco, uma em cada três mulheres admite já ter
sofrido de violência física ou sexual dentro da própria casa, pelo
parceiro – na maioria dos casos, por ciúme. Ciúme, ou seja,
limitação do direito de ir e vir, de se vestir, pensar e falar com
livre arbítrio, enfim, limitação da liberdade individual. De
“sujeito” que era antes do casamento, a mulher torna-se “objeto”
de propriedade do homem com quem casou: este adquire um crédito e
ela, uma dívida diante da sociedade, do marido, dos filhos. Fatores
como a manutenção da família e a dependência econômica
desestimulam a denúncia e fazem com que a violência familiar se
torne um hábito. Perguntada se è respeitada “dentro de casa”,
uma em cada duas mulheres brasileiras responde que sim, mas se a
pergunta for feita de modo comparativo, quatro em cada cinco mulheres
respondem que dentro da sua casa, o homem è mais respeitado do que a
mulher.
Quer dizer que a
mulher assume seu sexo como “segundo sexo” no sentido de “ser
menos”: ter menos poder e menos direitos que o marido e em geral os
homens, mesmo sobre seu próprio corpo, sua sexualidade, sua vida
cotidiana, sua realização profissional e humana. Admite ser frágil
e dependente. Ser inferior. Porque?
Desde
a primeira infância, em nossa sociedade, nossa auto-estima de
mulheres é manipulada para incutir a vergonha de ser fêmea. É um
pensamento comum invadindo o nosso cérebro com frases feitas –
aparentemente
inocentes
– quando ao que è bom e o que não è bom no ser mulher. Menina
que grita, bate e joga bola não è feminina. O menstruo è um
incômodo. Mostrar o umbigo, rebolar, sentar descomposta, sair de
minissaia, isso è provocação! Uma vergonha! E por aí vai. Não
tem contradição com o mega-corpo feminino despido e perfeito que
domina cada canto de nosso espaço público. Pois este também é um
corpo-objeto, exposto ao olhar e ao desejo masculino. Carne à venda
no açougue. Ter ocupado os outdoors e as bancas de jornais não
significa ter conquistado mais espaço mas sim ter perdido o senso da
decência e do mínimo respeito devido ao nosso corpo. Na nossa
aceitação, admitimos mais uma vez nossa subordinação ao
masculino. Desistimos de ser sujeito e tornamo-nos objeto. Desistimos
de nosso corpo sagrado e aceitamos em troca um corpo pornográfico.
Isso
também não foi sempre assim. Isso já foi... bem melhor! Nossa
sociedade histórica, embasada na dominação do macho sobre a fêmea
que até a Bíblia
legitima (Eva não saiu de uma costela do Adão? Eva não foi criada
por última, só para fazer companhia ao homem? E depois de comer a
maça que lhe havia sido proibida, não foi castigada por Deus e
condenada a sofrer as dores do parto, a pertencer e obedecer ao
marido para sempre? Isso está escrito na Genesis, primeiro capítulo
da Bíblia e nosso maior mito de fundação) bem, a nossa è apenas
uma das muitas sociedades humanas. A mais recente. Ao longo de
milênios, outras sociedades (pré-históricas) sobreviveram com
outros parâmetros de fundação. As sociedades conhecidas como
“matrilineares” praticavam a comunidade de bem e recursos, a
promiscuidade
sexual, o acesso coletivo ao sagrado, a partilha igualitária do
trabalho entre gêneros – conforme o que chamamos de “direito
natural” ou ecológico. Nossa sociedade patriarcal, ao contrário,
funda-se no “direito positivo” ou seja na propriedade privada, na
monogamia, no monoteismo, na exploração capitalista do trabalho e
em sua divisão por gênero entre domestico (feminino) e público
(masculino).
Pensando bem, o
capitalismo não funcionaria de outra forma: sua premissa é a
submissão do corpo feminino ao poder masculino, para fins de
produção e reprodução. Sua característica principal, a exclusão
da mulher do espaço sagrado e do espaço público.
Porisso
o Deus macho da Bíblia arruma aquela desculpa da maça que causa a
expulsão de Adão e Eva do paraíso! Porisso Zeus, o patriarca da
família mitológica grega, parece não conhecer outra forma que não
seja a submissão violenta, para se aproximar das deusas e das
mulheres que deseja! Estas histórias representam a brutalidade que
foi reservada às mulheres na fase de transição das sociedades
matrilineares ao patriarcado. Culpa, castigo, violência e mutilação
marcam um corpo que havia de ser uma ameaça excessiva, pelo imenso
poder biológico que a Natureza lhe concedeu: o poder de procriar. È
no corpo da mulher, corpo sagrado como os corpos grávidos das deusas
ancestrais, que a Natureza
cumpre o milagre da fertilidade e da vida. A violência
legitimada contra o corpo feminino – submetido ao castigo desde a
criação – exorcisma este poder que, se liberado, seria capaz de
pôr em crise o sistema capitalista. Imaginem. Como seria possível
determinar a paternidade e manter o principio de herança familiar,
se a mulher resolvesse sair do controle masculino e se apoderar de
seu corpo, de sua liberdade sexual e de expressão? Sair do tal
“lugar de mulher”? Sair do lugar da culpa, da dívida, da
mutilação, da burka?
Sair da Eva e também
da Cinderela, da Branca de Neve, da Barbie?
Será mesmo que quem
não for Maria, será Madalena? Madalena, a mulher vagabunda, a
pecadora, ajoelhada, escandalosa, culpada, humilhada, apedrejada,
penitente..
Mas não foi ela
também que abandonou família e obrigações para seguir o bando de
Cristo? Não foi ela a única apóstola que o seguiu na cruz, desceu
o corpo e o enterrou, testemunhou a ressurreição e correu para
anunciar o evangelho aos outros apóstolos? Madalena, que diz a
lenda, viajou da Palestina para pregar o evangelho na França. Não
foi ela não? A primeira dos Apóstolos, a mais amada, a companheira
de Jesus?
Quem é Madalena?
Sim, Madalena é a
que, por ser mulher, não foi escutada. A que, por ser mulher, foi
identifica pela Igreja com a puta penitente. Que virou padroeira dos
seres humanos excluídos, destituídos, despossuídos e prostituídos.
Que è julgada, humilhada e apedrejada pelas falácias cotidianas e
que todo dia dá a volta por cima. Madalena é a mulher que se recusa
a “ser menos” do que é. A mulher que todo dia sai em busca do
seu lugar.
Alessandra Vannucci
Madalena